Doenças, mortes e o silêncio institucional que cerca os mergulhadores profissionais no Brasil
Por J. Adelaide
Eles trabalham onde o corpo humano não deveria estar. Sob toneladas de água, em ambientes hostis, com riscos extremos e invisíveis. Ainda assim, quando adoecem ou morrem, muitos mergulhadores profissionais da indústria naval e de óleo e gás no Brasil descobrem que o maior perigo não estava no fundo do mar — mas fora dele: a negação sistemática de seus direitos.
Esta reportagem revela como doenças ocupacionais e mortes relacionadas ao mergulho profissional são frequentemente descaracterizadas, minimizadas ou apagadas por um sistema que coloca interesses econômicos acima da saúde humana.
Uma profissão de alto risco, pouco reconhecida
O mergulho profissional é essencial para a manutenção de plataformas de petróleo, dutos submarinos, cascos de navios e estruturas offshore. Sem ele, boa parte da indústria energética brasileira simplesmente para.
Ainda assim, trata-se de uma das atividades industriais mais perigosas do mundo, segundo organismos internacionais de segurança do trabalho. No Brasil, porém, não há estatísticas públicas consolidadas sobre adoecimentos crônicos e mortes de mergulhadores.
A ausência de dados não é casual. É estrutural.
O corpo sob pressão — literalmente
Mergulhadores profissionais são submetidos repetidamente a condições fisiológicas extremas:
Exposição prolongada à alta pressão
Formação de microbolhas gasosas no organismo
Alterações na oxigenação cerebral
Sobrecarga mecânica de grandes articulações
Estresse térmico e neurológico
Longos períodos em câmaras hiperbáricas
Esses fatores estão associados a doenças conhecidas pela medicina do mergulho, como:
Osteonecrose disbárica (morte do osso, especialmente no quadril)
Lesões degenerativas precoces da coluna
Lesões degenerativas precoces nas grandes articulações (Quadril e Ombros)
Déficits neurológicos cumulativos
Distúrbios cognitivos e psicológicos
Muitas dessas condições não surgem de forma aguda, mas se desenvolvem silenciosamente ao longo dos anos — justamente o que dificulta seu reconhecimento como doenças do trabalho.
Exames existem. Reconhecimento, não.
Paradoxalmente, mergulhadores passam por exames médicos periódicos rigorosos, exigidos pelas próprias empresas contratantes. Mesmo assim, quando surgem doenças graves, o discurso costuma ser o mesmo:
“Não há nexo com a atividade profissional.”
Na prática, o sistema de saúde ocupacional do setor funciona sob um conflito de interesses estrutural.
Médicos do trabalho e médicos hiperbáricos que avaliam os mergulhadores são, em sua maioria:
Contratados diretamente pelas empresas
Vinculados a clínicas credenciadas pelas contratantes
Submetidos a pressões administrativas e contratuais
O resultado são laudos genéricos, sintomas minimizados e diagnósticos atribuídos a “fatores pessoais” ou “degeneração natural”.
Quando o médico da empresa não é do trabalhador
Especialistas ouvidos pela reportagem explicam que o médico ocupacional deveria atuar como agente de proteção à saúde do trabalhador, mas, no modelo atual, frequentemente atua como filtro de risco jurídico para as empresas.
Entre as práticas relatadas por mergulhadores estão:
Ausência de exames sensíveis, como ressonância magnética
Alta médica precoce após incidentes
Não emissão de Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT)
Pressão para retorno rápido à atividade
Desconsideração de sintomas neurológicos e articulares persistentes
Sem CAT, não há reconhecimento previdenciário nem indenização.
Mortes classificadas como “mal súbito”
Mesmo em casos fatais, o nexo ocupacional nem sempre é investigado de forma adequada.
Mortes ocorridas após ciclos intensos de mergulho são frequentemente registradas como:
Causa indeterminada
Mal súbito
Sem análise aprofundada de:
Condições reais da operação
Para famílias, isso significa nenhuma responsabilização. Para o setor, significa continuidade do modelo.
O medo de denunciar
O mercado de mergulho profissional no Brasil é pequeno e altamente dependente de terceirizações. Empresas surgem e desaparecem rapidamente. Contratos são temporários. Escalas, voláteis.
Nesse ambiente, questionar laudos médicos ou relatar sintomas pode custar caro.
“Quem reclama não é mais chamado.”
Esse medo cria um pacto de silêncio, onde profissionais seguem trabalhando lesionados, adoecidos ou sob risco crescente.
A doença aparece quando o contrato acaba
Muitos mergulhadores só recebem diagnósticos graves anos depois de deixar a profissão. Quando procuram reconhecimento, escutam que:
Já não estão mais na atividade
Não há prova do vínculo
O prazo legal prescreveu
Sem documentação própria, a doença simplesmente não existe para o sistema.
Como mergulhadores profissionais podem se proteger juridicamente
Especialistas em direito do trabalho e saúde ocupacional recomendam medidas preventivas ao longo da carreira:
✔ Arquivo médico pessoal independente
Guardar todos os exames, laudos, ASOs, relatórios de mergulho e escalas.
✔ Exames fora do circuito da empresa
Consultar médicos independentes, especialmente ortopedistas, neurologistas e radiologistas experientes em doenças do mergulho.
✔ Registro formal de sintomas
Sintomas não documentados não existem juridicamente.
✔ Exigir cópias de todos os laudos
A empresa não pode reter exames.
✔ Nunca assinar documentos genéricos ou em branco
✔ Exigir emissão de CAT
Mesmo contra a vontade da empresa.
✔ Procurar advogado especializado ainda na ativa
Direitos prescrevem.
Um fundo do mar sem voz
O Brasil depende do mergulho profissional. Mas o sistema que lucra com esse trabalho não acompanha seus profissionais até o fim.
Enquanto não houver:
Estatísticas públicas
Fiscalização independente
Autonomia médica real
Reconhecimento previdenciário adequado
mergulhadores continuarão pagando com o próprio corpo — e, em alguns casos, com a própria vida — por um trabalho essencial e invisível.
📌 Esta reportagem está aberta a relatos de mergulhadores, familiares e profissionais de saúde.

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