Viagra e Mergulho: quando a fisiologia entra em conflito com a descompressão
Por que um medicamento amplamente conhecido pode representar um risco sério para mergulhadores
O mergulho profissional sempre conviveu com um paradoxo delicado: quanto mais se avança no entendimento da fisiologia humana, mais se descobre que certos fatores aparentemente inofensivos podem ter consequências graves debaixo d’água. Um desses fatores é o uso de medicamentos vasodilatadores, em especial o sildenafil, princípio ativo do Viagra.
Na edição de verão de 2024 da revista Professional Diver, o oficial de descompressão Bob Cole (DMS FRSCTD, SAA) apresenta uma análise direta e preocupante: o uso de Viagra e outros inibidores da PDE-5 pode aumentar o risco e a gravidade da Doença Descompressiva (DCI), especialmente em mergulhadores profissionais e técnicos.
O que faz o Viagra no organismo?
O sildenafil foi desenvolvido originalmente para tratar hipertensão pulmonar e condições cardíacas, atuando como um potente vasodilatador. Sua função é simples em teoria: relaxar os vasos sanguíneos, aumentando o fluxo de sangue (perfusão) para determinados tecidos.
No entanto, é exatamente esse efeito que cria o problema no mergulho.
Durante a imersão, o corpo humano absorve gases inertes — principalmente nitrogênio ou hélio — proporcionalmente à pressão ambiente. Os modelos de descompressão utilizados em computadores e tabelas assumem uma perfusão “normal” dos tecidos. Quando essa perfusão é alterada artificialmente por medicamentos, o equilíbrio previsto pelos algoritmos deixa de existir.
Vasodilatação e absorção de gás: um risco invisível
Segundo o artigo, o aumento da perfusão causado pelo sildenafil não se limita a melhorar a oxigenação. Ele também:
Aumenta a velocidade de absorção de gases inertes nos tecidos
Facilita o transporte desses gases para regiões do corpo normalmente menos perfundidas
Pode levar a uma saturação além do previsto pelos modelos descompressivos
Em termos práticos, isso significa que o mergulhador pode estar dentro dos limites do computador, mas fora dos limites reais do seu próprio corpo.
O resultado? Maior probabilidade de ocorrência de DCI e, principalmente, formas neurológicas mais severas da doença.
Evidências científicas e preocupação médica
Pesquisas citadas por Bob Cole indicam que o uso de sildenafil e drogas semelhantes pode promover o início da DCI e aumentar sua severidade neurológica. Diferentemente de outros fatores de risco mais conhecidos — como desidratação ou esforço excessivo — o efeito dos vasodilatadores é silencioso e difícil de detectar antes do acidente.
Outro ponto crítico é que os computadores de mergulho não conseguem compensar esse efeito. Eles não “sabem” que o mergulhador está sob ação de um medicamento que altera drasticamente a perfusão sanguínea.
Quando parar de usar o medicamento antes de mergulhar?
O artigo publicado na revista " "Professional Diver" aborda uma das dúvidas mais frequentes entre mergulhadores: quanto tempo antes do mergulho o medicamento deve ser interrompido?
A resposta não é simples.
Sildenafil (Viagra): meia-vida de aproximadamente 4 horas
Vardenafil (Levitra): entre 4 e 6 horas
Tadalafil (Cialis): cerca de 17,5 horas
Entretanto, o conceito-chave não é apenas a meia-vida, mas o tempo necessário para o corpo eliminar completamente o medicamento, o que pode levar até:
24 horas (Viagra)
36 horas (Levitra)
até 105 horas (Cialis)
Mesmo assim, Bob Cole destaca que não existe consenso científico definitivo sobre um intervalo totalmente seguro para o mergulho após o uso dessas drogas.
Viagra, coração e mergulho: um alerta duplo
Outro ponto sensível levantado na reportagem é que muitos usuários de sildenafil possuem condições cardíacas ou hipertensão — fatores que, por si só, já exigem avaliação rigorosa para o mergulho profissional.
A recomendação é clara:
👉 Mergulhadores que utilizam Viagra por razões médicas devem possuir um certificado médico específico para mergulho, emitido por um profissional com experiência em medicina hiperbárica.
Sem essa liberação, o risco não é apenas descompressivo, mas também cardiovascular.
Uma falsa sensação de segurança
Talvez o aspecto mais perigoso seja a percepção equivocada de segurança. O mergulhador pode:
Cumprir rigorosamente o perfil planejado
Utilizar tabelas ou computadores modernos
Realizar paradas adequadas
E ainda assim sofrer um acidente descompressivo grave.
Isso ocorre porque o risco não está no perfil, mas na fisiologia alterada.
Conclusão: um risco subestimado no mergulho profissional
A mensagem central da Professional Diver é direta e desconfortável:
Viagra e mergulho não combinam.
Em um ambiente onde pequenos desvios fisiológicos podem custar caro, o uso de medicamentos vasodilatadores representa um risco que ainda é pouco discutido, especialmente fora dos círculos médicos e científicos.
Para o mergulhador profissional, onde a exposição é frequente e os perfis são mais agressivos, a recomendação é inequívoca:
não mergulhar sob efeito de sildenafil ou drogas semelhantes.
Segurança no mergulho não depende apenas de equipamentos, treinamento e procedimentos — mas também de entender profundamente o que acontece dentro do próprio corpo.

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