Qual o valor da vida e saúde dos mergulhadores profissionais?
Por J. Adelaide
A indústria naval e de óleo e gás construiu sua fortuna sobre o trabalho de homens que operam onde poucos conseguem sobreviver. No entanto, mesmo dentro daquilo que já é considerada uma das profissões mais perigosas do mundo, existe uma hierarquia silenciosa de risco, reconhecimento e remuneração. Se os mergulhadores de saturação já são subvalorizados frente aos lucros bilionários das empresas, a situação dos mergulhadores profissionais rasos — que atuam em plataformas, portos, estaleiros, cascos de navios, dutos costeiros e estruturas submersas — é ainda mais crítica e invisível.
A falsa divisão entre “profundidade” e perigo
O discurso dominante no setor tenta naturalizar a ideia de que apenas o mergulho profundo ou de saturação representa risco extremo. Essa narrativa, convenientemente adotada por empresas e reforçada em negociações sindicais frágeis, ignora um fato essencial: o perigo não está apenas na profundidade, mas na exposição contínua, na precariedade operacional e na ausência de proteção adequada.
Mergulhadores rasos trabalham, muitas vezes, em ambientes altamente contaminados, com visibilidade quase nula, correntes imprevisíveis, tráfego intenso de embarcações e estruturas metálicas cortantes. São eles que realizam inspeções emergenciais, soldagens subaquáticas improvisadas, limpeza de cascos, instalação de defensas e reparos urgentes — frequentemente sob pressão de tempo e custo. Ainda assim, recebem salários significativamente menores, contratos mais frágeis e quase nenhuma proteção de longo prazo.
Enquanto o mergulhador de saturação é visto como “especialista de elite”, o mergulhador raso é tratado como mão de obra descartável, mesmo sendo peça-chave na manutenção diária da infraestrutura marítima e portuária do país.
Lucros em superfície, riscos no fundo
Grandes empresas de mergulho industrial faturam milhões — em alguns casos, bilhões — com contratos junto a estatais, armadores, estaleiros e multinacionais de energia. Esses valores são possíveis graças à atuação direta dos mergulhadores, sejam eles rasos ou profundos. No entanto, a distribuição dessa riqueza revela um abismo ético: quanto mais próximo da linha de frente, menor é a fatia do bolo.
Mergulhadores rasos, apesar de atuarem em maior número e com maior frequência operacional, raramente têm acesso a adicionais compatíveis com o risco, participação nos lucros ou planos de proteção para doenças ocupacionais. Muitos trabalham como terceirizados, por diárias instáveis, sem garantias de continuidade ou respaldo médico independente. A lógica é simples e cruel: se adoecer, outro assume seu lugar.
A engrenagem dos acordos silenciosos
No centro dessa desigualdade está uma relação estruturalmente desequilibrada entre empresas e trabalhadores. O sindicato patronal atua de forma coesa, respaldado pelo poder econômico das corporações. Já o sindicato da categoria enfrenta limitações financeiras, fragmentação interna e, em alguns casos, acordos firmados longe do olhar dos trabalhadores.
Relatos recorrentes apontam para negociações realizadas “por baixo dos panos”, nas quais benefícios são reduzidos, adicionais de risco diluídos e cláusulas protetivas simplesmente retiradas em nome da “viabilidade econômica”. Nessas mesas de negociação, o mergulhador raso é o primeiro a perder: menos visibilidade, menos mobilização e menor poder de pressão.
O resultado é um modelo em que a economia se impõe à vida. O custo de um atraso em uma obra ou de uma paralisação operacional pesa mais, nos cálculos empresariais, do que a saúde física e mental de quem executa o serviço.
Doenças, mortes e o silêncio institucional
Seja no mergulho raso ou profundo, as consequências aparecem anos depois: problemas osteoarticulares, neurológicos, respiratórios e psicológicos. No entanto, a maioria dessas doenças não é reconhecida como ocupacional. Exames médicos são frequentemente conduzidos por profissionais vinculados às próprias empresas, criando um evidente conflito de interesses. O trabalhador adoece, mas o sistema se recusa a enxergar a relação com o trabalho.
No caso dos mergulhadores rasos, a situação é ainda mais grave: muitos sequer conseguem comprovar tempo de exposição suficiente para reivindicar direitos mínimos. Mortes e acidentes são tratados como fatalidades isoladas, não como sintomas de um modelo que aceita o risco como custo operacional.
Por que uma lei é urgente — para todos os mergulhadores
A discussão sobre uma lei que garanta remuneração substancial e participação nos lucros não pode se limitar aos mergulhadores de saturação. Ela deve abranger todos os mergulhadores profissionais, especialmente os rasos, historicamente marginalizados.
Uma legislação robusta poderia:
Reconhecer oficialmente o mergulho profissional — raso ou profundo — como atividade de risco extremo;
Garantir participação obrigatória nos lucros das empresas de mergulho e contratantes finais;
Estabelecer pisos salariais compatíveis com o risco real da atividade;
Criar mecanismos de proteção à saúde independentes das empresas;
Impedir acordos coletivos que retirem direitos essenciais sob o pretexto de competitividade.
Conclusão: o fundo comum da injustiça
No fundo do mar, não há hierarquia de sofrimento. Seja a 10 ou a 300 metros de profundidade, o corpo do mergulhador é o último elo de uma cadeia que gera riqueza em escala industrial. A diferença é que alguns ainda conseguem visibilidade, enquanto outros permanecem invisíveis — até adoecerem ou morrerem.
Defender uma lei de remuneração justa e participação nos lucros para mergulhadores profissionais é, acima de tudo, questionar um modelo que normalizou a desigualdade e transformou vidas humanas em variável de ajuste econômico. Enquanto isso não mudar, o verdadeiro abismo não estará no mar, mas na forma como a sociedade escolhe valorar quem trabalha nele.

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