No Fundo do Mar, O Risco; no Escritório, o Prêmio
A engrenagem desigual do mergulho comercial na indústria naval e de óleo e gás
Por trás de cada duto inspecionado, válvula reparada ou casco recuperado em águas profundas, existe um trabalho que poucos veem e quase ninguém valoriza. No mergulho comercial da indústria naval e de óleo e gás, a lógica é clara: quem assume os maiores riscos físicos, ambientais e psicológicos recebe salários comprimidos; quem se distancia da operação, sentado em escritórios climatizados, acumula bônus, promoções e prestígio — muitas vezes sem formação técnica compatível com os cargos que ocupa.
O trabalho sujo que sustenta bilhões
O mergulhador comercial é um profissional altamente qualificado. Passa por cursos técnicos rigorosos, certificações nacionais e internacionais, treinamentos hiperbáricos, além de avaliações médicas constantes. Trabalha sob pressão literal e figurada: pressão atmosférica elevada, equipamentos que ultrapassam facilmente os 50 kg, risco de acidentes fatais, doenças ocupacionais como disbarismo, osteonecrose, lesões articulares crônicas e impactos psicológicos severos.
Apesar disso, o mergulhador é tratado como custo operacional, não como ativo estratégico.
“Se der problema, a empresa troca o mergulhador. Se der lucro, o gerente recebe bônus”, relata um mergulhador com mais de 15 anos de offshore, que prefere não se identificar por medo de retaliações.
Salários achatados, metas infladas
Nos últimos anos, especialmente após ciclos de crise no setor de óleo e gás, empresas de mergulho passaram a adotar políticas agressivas de redução de custos. Na prática, isso se traduz em:
congelamento ou redução de diárias;
contratos cada vez mais precarizados;
escalas exaustivas;
redução de efetivos mínimos;
uso de insumos mais baratos, inclusive em ambientes hiperbáricos.
Enquanto isso, cargos de gerência, superintendência e diretoria seguem crescendo em remuneração, frequentemente atrelados a metas de “eficiência” e “otimização de custos” — eufemismos para cortes diretamente relacionados à massa trabalhadora.
“Quando cortam treinamento, equipe, manutenção ou até qualidade de suprimento, isso vira indicador positivo para quem está na gerência”, explica um ex-coordenador operacional do setor naval.
A cadeia do apadrinhamento
Um dos pontos mais sensíveis — e menos debatidos publicamente — é a origem de muitos gestores do setor. Diferente dos mergulhadores, cuja progressão depende de certificações técnicas, exames e experiência comprovada, grande parte dos cargos administrativos e executivos:
não exige formação específica em mergulho ou operações subsea;
não demanda vivência offshore;
é preenchida por indicações internas, redes de relacionamento e apadrinhamentos políticos ou corporativos.
“Você vê gerente de contrato que nunca vestiu um capacete de mergulho, nunca entrou numa câmara hiperbárica, mas decide cronograma, efetivo e procedimento”, afirma um supervisor de mergulho.
Essa desconexão entre decisão e realidade operacional cria um cenário perigoso: quem não conhece o risco passa a normalizá-lo.
Premiação por cortar onde dói mais
Documentos internos e relatos de trabalhadores indicam que muitos gestores são avaliados e premiados por indicadores como:
redução de custo por homem-hora;
diminuição de tempo de operação;
menor gasto com pessoal e logística.
O problema é que, no mergulho comercial, tempo e custo estão diretamente ligados à segurança.
“Reduzir tempo de fundo, equipe de apoio ou manutenção não é eficiência. É roleta-russa subaquática”, resume um médico hiperbárico independente.
O silêncio imposto pelo medo
A engrenagem se sustenta também pelo medo. Denunciar significa:
não ser mais escalado;
entrar em “listas informais”;
perder contratos futuros.
Sem sindicatos fortes, com fiscalização limitada e uma cultura de normalização do risco, o mergulhador aprende cedo que sobreviver profissionalmente muitas vezes significa se calar.
Quem paga a conta
Quando algo dá errado, a narrativa é conhecida:
“mal súbito”,
“fatalidade”,
“erro humano”.
Raramente se fala em:
decisões gerenciais;
cortes de custo;
pressão por prazo;
falhas sistêmicas.
O resultado é um modelo perverso: o risco é privatizado no corpo do trabalhador, e o lucro é socializado nos altos cargos.
Até quando?
A indústria naval e de óleo e gás gosta de se apresentar como altamente tecnológica, moderna e segura. Mas enquanto a lógica de valorização continuar invertida — premiando quem corta e descartando quem executa — o fundo do mar seguirá sendo palco de uma desigualdade profunda, silenciosa e mortal.
O mergulhador não pede privilégio.
Pede respeito, reconhecimento e condições dignas para voltar vivo à superfície.

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