Entre a Técnica e o Abismo
Quando a Produtividade Mata o Mergulho Comercial
Por J. Adelaide
O mergulho comercial é, por definição, uma atividade técnica de alto risco. Cada descida envolve física, fisiologia, engenharia, planejamento e disciplina operacional. Ainda assim, em muitos ambientes de trabalho, essa essência técnica vem sendo deliberadamente desprezada em nome de um único indicador: produtividade.
Nesse cenário surgem os chamados — nos bastidores da própria categoria — “mergulhadores kamikazes”: profissionais que ignoram limites fisiológicos, atalhos técnicos e protocolos de segurança para cumprir prazos, agradar chefias ou garantir a próxima escala. O problema, porém, vai muito além da atitude individual. Ele é estrutural, sistêmico e, em muitos casos, estimulado de cima para baixo.
Em operações mal geridas, a técnica passa a ser vista como obstáculo. Planejamento é “burocracia”. Tabela de mergulho vira “opinião”. Câmara hiperbárica, um “custo parado”.
Nessas condições, o mergulho deixa de ser uma operação controlada e passa a ser uma aposta.
Relatos recorrentes de profissionais do setor indicam:
Mergulhos repetitivos sem cálculo adequado de nitrogênio residual
Extensões de tempo de fundo sem ajuste de descompressão
Desprezo por intervalos de superfície
Pressão direta ou indireta para “dar mais um mergulho”
Uso inadequado de tabelas ou softwares sem entendimento fisiológico
O resultado não aparece imediatamente. Ele se acumula em silêncio: microbolhas, fadiga crônica, lesões neurológicas sutis, disbarismos, sequelas que só se manifestam anos depois — quando já não há mais empresa, contrato ou responsável.
O Problema dos Supervisores que Não Sabem Supervisionar
Se o mergulhador kamikaze é o sintoma, a supervisão despreparada é a doença.
Em teoria, o supervisor de mergulho é o guardião da segurança. É quem decide:
Quando mergulhar
Quanto tempo ficar no fundo
Como descomprimir
Quando abortar uma operação
Na prática, porém, há um número alarmante de supervisores que:
Não sabem aplicar corretamente uma tabela de mergulho
Não compreendem o conceito de tempo de nitrogênio residual
Não sabem planejar mergulhos repetitivos
Nunca operaram — ou sequer conhecem em profundidade — uma câmara hiperbárica
Não dominam fisiologia do mergulho além do básico teórico
O mais grave: muitos desses cargos não são ocupados por critério técnico, mas por apadrinhamento, tempo de casa, relações políticas internas ou simples conveniência administrativa.
Um supervisor despreparado não é apenas ineficiente. Ele é perigoso.
Ele pode transformar uma operação rotineira em um acidente grave — ou fatal — sem sequer perceber onde errou.
Quando a Hierarquia Substitui a Competência
O problema se agrava quando cargos estratégicos — supervisão, superintendência, gerência e até diretoria — são ocupados por pessoas desconectadas da realidade operacional do mergulho.
Decisões passam a ser tomadas por quem:
Nunca sentiu narcose
Nunca gerenciou uma emergência subaquática
Nunca esteve dentro de uma câmara às três da manhã com um colega em sofrimento
Nunca precisou abortar um serviço milionário por segurança
Nessa lógica, segurança vira discurso institucional, não prática diária.
O Preço Invisível dos Erros Visíveis
Acidentes graves no mergulho raramente têm uma única causa. Eles são o resultado de uma cadeia de falhas:
Pressão por produtividade
Supervisão despreparada
Planejamento inadequado
Cultura de silêncio
Falta de responsabilização
Quando algo dá errado, a conta costuma recair sobre o elo mais fraco: o mergulhador. Mas a raiz quase sempre está acima dele.
Conclusão: Como Romper Esse Ciclo Perigoso
Criticar sem apontar caminhos seria apenas barulho. O setor precisa de soluções estruturais, não remendos.
1. Supervisão é Especialidade, Não Promoção
Supervisor de mergulho não deve ser “o próximo cargo natural”.
Deve ser uma especialização técnica, com:
Formação específica avançada
Avaliações periódicas de competência
Provas práticas de planejamento e emergência
Recertificação obrigatória
2. Conhecimento Técnico Obrigatório e Auditável
Nenhum supervisor deveria atuar sem demonstrar domínio comprovado de:
Planejamento de mergulhos repetitivos
Operação básica e avançada de câmaras hiperbáricas
Auditorias técnicas independentes devem validar isso.
3. Fim da Cultura do Silêncio
Mergulhadores precisam ter:
Direito formal de recusar mergulhos inseguros
Canais de denúncia técnica sem retaliação
Proteção institucional contra pressão indevida
Segurança não pode depender de coragem individual.
4. Separar Produtividade de Imprudência
Empresas precisam entender que:
Mergulho seguro é mais produtivo no longo prazo
Acidente custa mais que atraso
Profissional lesionado é perda de capital humano
Segurança não é custo. É investimento operacional.
5. Responsabilização Real
Decisões técnicas erradas precisam ter responsáveis claros — inclusive em cargos altos.
Sem isso, o sistema continuará premiando atalhos e punindo quem tenta fazer certo.
Entre o Profissional e o Kamikaze
O mergulho comercial não precisa de heróis suicidas.
Precisa de técnica, conhecimento, planejamento e liderança competente.
Enquanto produtividade for usada como desculpa para ignorar ciência, e cargos de decisão forem ocupados por quem não domina o básico da atividade, o risco continuará descendo junto com o mergulhador — a cada metro.
E, no fundo, todos sabem:
não é uma questão de “se” algo vai acontecer, mas de “quando”.

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